“A Verdadeira História Da Ficção Científica”, de Adam Roberts: a FC como um mapa para a humanidade

Grupo Editorial Pensamento
4 min readMay 21, 2018

Por: Cláudia Fusco

Não é um exagero dizer que, há milênios, a humanidade sonha com histórias fantásticas. Seja por meio de aventuras épicas, viagens a planetas inóspitos ou mitos que baseiam muitas crenças, costumes e práticas da sociedade ocidental, é fato que a narrativa maravilhosa foi a primeira lente pela qual tentamos entender o universo ao nosso redor. Apontamos para as estrelas e enxergamos nelas deuses e feitos heroicos; encaramos o trovão como um alerta do divino. E por trás dos mitos e das lendas, uma centelha daquilo que nos torna humanos: a curiosidade, a sede pelo conhecimento, pelo entendimento do mundo e do eu.

É dessa centelha que surge a ficção científica. Você, sem dúvida, já a conhece, pelo menos um pouquinho: seja esbarrando nas naves e sabres de luz de Star Wars, nos robôs conscientes de Westworld, ou quem sabe dizendo que uma nova tecnologia é “muito Black Mirror”. Cada vez mais, a FC se infiltra na sociedade contemporânea, fazendo parte do nosso discurso e modo de pensar. Mas se alguém pedisse para você, em poucas palavras, definir o que é ficção científica, o que você diria?

Pois é, não é mesmo uma resposta simples. Isso acontece porque a ficção científica está em séculos e mais séculos de histórias que influenciaram, e muito, nossa forma de enxergar a realidade. Não dá para reduzir o gênero apenas em seus símbolos mais famosos, como raças alienígenas, explosões e idiomas estranhos; muito da FC acontece no microscópio, nas relações humanas (que talvez seja, afinal, o maior tema do gênero), na visão de mundo ocidental sobre expansão territorial, poder e redenção. Como agrupar o arrepiante 1984 e o sensível filme Ela em uma só caixinha, por maior que ela seja? Como apresentar a história da ficção científica mundial, esmiuçando as contradições e belezas do gênero, sem fazer injustiças a ela?

Foi essa a enorme, assustadora e quase impossível tarefa de Adam Roberts em A Verdadeira História Da Ficção Científica: Do Preconceito À Conquista Das Massas, que está chegando ao Brasil pela Seoman. Adepto a um estilo honesto e direto ao ponto de escrita, Roberts não tem medo de chacoalhar convicções já bem estabelecidas pela academia de pesquisadores da FC, como a origem do gênero em Frankenstein, ou falar abertamente sobre obras consideradas clássicas. Roberts é sincero, meticuloso e, muitas vezes, bem divertido — sua clareza impressiona e foge da aridez de muitos textos acadêmicos sobre a FC literária.

Mas Roberts não se contenta em falar “apenas” sobre literatura, que já renderia um caldo bem rico (e desafiador) de temas a explorar; nas 700 e poucas páginas dessa obra, o autor também introduz conversas sobre cinema, quadrinhos, séries e videogames; em alguns momentos, foge do eixo anglófono da ficção científica clássica para nos apresentar cenários franceses, japoneses e até uma menção à FC brasileira.

Passear por essas páginas é encantador por três razões. A primeira é, naturalmente, a beleza da pesquisa e narrativa de Roberts. Como um antigo contador de histórias, ele recupera ficções esquecidas há séculos e joga luz sobre elas, trazendo relevância para essas tramas que ainda falam com o mundo moderno. A paixão do autor pelo assunto é evidente, óbvia; é inevitável se apaixonar junto. Ao relacionar ficção e ciência, como faz magistralmente, Roberts não apenas assinala o momento em que ambas deixaram de andar juntas; de certa forma, também mapeia a evolução da sociedade ocidental por meio de histórias. Juntas, ficção e ciência exploraram o universo em balões, naves, microscópios. Juntas, indagaram nossa urgência em conquistar, expandir, destruir. É aí que mora a essência verdadeira da FC: são histórias, inevitavelmente, sobre pessoas e seu tempo.

A segunda razão é a originalidade da obra. Como foi dito ali em cima, Roberts não tem medo de expor o que realmente pensa sobre alguns autores e obras consagradas na FC — e não é à toa que o título dessa obra é tão ousado. Reviver certos debates traz frescor ao estudo do gênero: é possível debater mais, evoluir mais a conversa, e é um alívio saber que nem tudo que sabemos e pensamos sobre a ficção científica está escrito em pedra. Conhecida por ser um gênero tão permeável e intercambiável, tão fluido por definição, a FC não deve ser estática em suas definições e convicções de fãs e pesquisadores: é necessário continuar pensando sobre o que ela representa para o mundo em que vivemos, todos os dias, especialmente quando muitos acreditam que essas obras têm o papel de prever o futuro.

Mas a razão que torna este livro tão fundamental para nós, brasileiros, é o que ele significa em termos de acesso ao conhecimento. Por muito tempo, a história da ficção científica, tão completa, revisada e debatida, existiu majoritariamente em inglês, em livros caros, difíceis de encontrar. Ter em mãos um registro tão apaixonado e profundo de tudo que o gênero já foi (e ainda pode vir a ser) não é apenas empolgante, mas verdadeiramente emocionante para os apaixonados pelo gênero. É impossível não sentir uma faísca elétrica de ansiedade por toda a ficção que ainda podemos criar e experimentar,. Apesar de existir há séculos — quantos, o leitor vai decidir até o fim da leitura -, a FC está apenas começando. E isso é fantástico.

Cláudia Fusco é jornalista e mestre em estudos de ficção científica pela Universidade de Liverpool, na Inglaterra. Ministra cursos e palestras sobre o fantástico na literatura e no cinema, com passagem pela USP, Casa do Saber, Youpix e MIS-SP.

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